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Kleshas – as cinco aflições da mente humana

Você conhece quais são os 5 maiores venenos da mente e sabe como podemos lidar com eles? Não? Então confere esse artigo até o final para entender como reconhecer e amenizar o sofrimento que eles causam, para ter uma vida mais harmônica.

No Yogasūtras, de Patañjali,  um dos clássicos mais reverenciados do Yoga, Patañjali cita 5 aflições que acometem a mente humana, que ele chama de kleshas (kleśa).

A palavra kleśa deriva da raiz klś que é traduzida como “aquilo que machuca”.

Segundo a linhagem que eu estudo, a intensidade e a duração do sofrimento causado por essas aflições, está intimamente ligada com a força que esses kleshas exercem sobre cada um de nós.

Ou seja, quanto mais nutrimos, maiores se tornam essas inclinações na nossa mente e assim mais tempo passamos desconectados da realidade e apegados a dores que se retroalimentam.

E quais são essas aflições?

Avidyā-asmitā-rāga-dveṣa-abhiniveśāḥ-kleśāḥ

Yoga sutras de Patañjali 2.3

1 |  Avidya

A primeira é avidyā. Palavra que é composta por vidyā (derivada da raiz sânscrita vid – saber, ver, conhecer), mais o prefixo a (que pode ser traduzido como – não, ausência ou sem). É possível traduzir avidyā como – ausência de conhecimento.

A falta de discernimento. A confusão entre a realidade e aquilo que é ilusão.

É dito que avidyā é a causa de todos os outros kleshas. Seria esse, o campo fértil para que se semeiem todas as outras sementes. É assim que tudo começa, que tudo se inicia.

Numa falta de clareza mental, numa percepção errônea, são gerados diversos tipos de mal-entendidos, confrontando a realidade.

Algumas tradições dizem, que essa ignorância é a principal causa que nos mantém presos à roda do saṃsāra, os ciclos de nascimentos e mortes.

2 | Asmita

Asmitā: o conceito de eu equivocado, uma identificação profunda com aquilo que não é, mas parece ser. Aqui, a autoimagem é definida pelos papéis que ocupamos, por nossas conquistas, por nossas aquisições. Uma afeição forte ao ahaṃkāra e ao nosso próprio corpo físico.

Quando percebemos que não somos o nosso corpo, nem aquilo que possuímos, nem nossas qualificações, esse egoísmo que é a base de asmitā, tende a diminuir junto com nossas ilusões.

3 | Raga

Rāga: o apego aos prazeres. O sofrimento vem da busca incessante por esses prazeres. Também pelo resultado futuro, da constante falta de autocontrole. Isso tudo faz com que nos identifiquemos ainda mais com o externo.

Essa projeção em cima dos desejos, como forma de – aquilo me fará feliz – faz com que vivamos ansiosos por determinado momento, encontro ou prazer. Da mesma forma pode ser que surjam uma série de pensamentos conflituosos sobre a infelicidade diante da perda de uma determinada coisa.

4 | Dvesa

Dveṣa: o apego às aversões. Aquilo que gera uma experiência de insatisfação. Evitar a todo custo, seja ativamente ou inconscientemente, aquilo que é indesejável para nós. 

A título de exemplo, esse tipo de sofrimento pode vir inclusive, quando rotulamos determinado evento como ruim, podendo até fazer com que percamos boas oportunidades e vivências únicas.

5 | Abhinivesa

Abhiniveśā: o medo. É dito por alguns mestres que esse veneno é o mais arraigado dentro de nós. É um trabalho difícil aceitar a inevitabilidade de nossa mortalidade.

Quando tomamos decisões baseadas no medo, isso nos impede de viver nossa vida plenamente. É certo que o medo é parcialmente necessário, desempenha um papel fundamental de proteção, agindo no sistema límbico. Mas quando presente em grandes proporções, tem o poder de bloquear nossas ações e atitudes perante a existência.

“Só existe medo em quem percebe pelo menos uma ligeira diferença entre si e Brahman”.

Sri Ramana Maharshi

Os estágios dos kleshas:

O mestre Patañjali nos yoga sutras, explica que existem alguns estágios dessas causas de sofrimento, veja quais são:

·       Prasupta: dormente;

·       Tanu: tênue, sutil;

·       Vicchina: ativo;

·       Udāranām: dominante.

Cabe a nós com a investigação da própria mente, não permitir que esses estágios avancem, mantendo essas influências dormentes. Isso exige um trabalho contínuo de vigília mental durante as fases e acontecimentos de nossas vidas.

Percebendo o surgimento de algum dos kleshas, deveríamos trabalhar para amenizá-lo, buscando algo que desvie a nossa atenção para um pensamento mais harmônico.

Assim dizendo pode até parecer austero, contudo, quanto mais atentos estamos nesse estudo interno, mais satisfeitos passamos a estar conosco e mais clareza existe perante a realidade que se apresenta.

A maneira de desativá-los descrita nos clássicos é exatamente essa, pensar no lado oposto, antes que se manifestem com maior intensidade, antes que gerem conflitos ou ofensas, por exemplo.

Na tradição essa ação é chamada de pratipakṣa bhāvana, o cultivar de um pensamento positivo, cada vez que um pensamento negativo surge na mente. Pratipakṣa significa oposto e bhāvana pode ser traduzido como emoção/sentimento. É uma prática que requer esforço e consistência, mas que pode se tornar um hábito.

A aquietação mental também pode vir através de diversas outras práticas, como o contato com a natureza, o aproximar-se de um animal que gostamos, caminhar, dançar, meditar, praticar yoga… Algo que mova a nossa mente para um estado de mais equilíbrio, nos afastando dessas aflições.

Alimentar o pensamento negativo, só faz com que ele tome grandes proporções, gere neuroses desnecessárias e nos faça perder muito tempo. Esse tempo que temos em vida, que é tão curto e tão precioso.

“amānitvamadambhitvamahiṁsā kṣāntirārjavam |
ācāryopāsanaṁ śaucaṁ sthairyamātmavinigrahaḥ ||

indriyārtheṣu vairāgyamanahaṅkāra eva ca |
janmamṛtyujarāvyādhiduḥkhadoṣānudarśanam ||

asaktiranabhiṣvaṅgaḥ putradāragṛhādiṣu |
nityaṁ ca samacittatvamiṣṭāniṣṭopapattiṣu ||

mayi cānanyayogena bhaktiravyabhicāriṇī |
viviktadeśasevitvamaratirjanasaṁsadi ||

adhyātmajñānanityatvaṁ tattvajñānārthadarśanam |
etajjñānamiti proktamajñānaṁ yadato’nyathā ||

“Ausência de orgulho, ausência de pretensão, não violência, tolerância, retidão, aproximar-se de um mestre genuíno, pureza, persistência, autocontrole; desapego dos objetos dos sentidos, ausência de egoísmo e percepção da dor como sofrimento inerente ao nascimento, à morte, à velhice e à doença; o desapego, estar livre de enredamento ao filho, à mulher, ao lar e ao resto, a equanimidade da mente alcançando o desejado ou o não desejado; a devoção a mim, viver em um lugar sossegado, ausência da necessidade da companhia das pessoas; a busca do conhecimento do ātman, apreciar o conhecimento da verdade, isso é chamado conhecimento. Aquilo que é contrário a isso, é ignorância”.

Bhagavadgītā 13.8-12

É libertador conseguir controlar os próprios impulsos

 Os kleshas surgem agindo como uma obstrução no fluxo natural e positivo da mente.

São emoções negativas, que se permitirmos, tomam proporções maiores afetando o nosso discernimento, fazendo com que tomemos atitudes precipitadas.

Pois se são considerados venenos para mente e influenciam diretamente a nossa percepção, automaticamente nossas interações e reações estarão contaminadas por eles.

No sutra 1.5, podemos perceber que os pensamentos produzem dois tipos de resultados para todos nós, a ver:

·       Klishta (kliṣṭā) – os que geram sofrimento e são dolorosos;

·       Aklishta (akliṣṭāḥ) – os que não geram sofrimento. 

O sábio deixa claro que os pensamentos que conduzem ao autoconhecimento, não nos farão sofrer, porém aqueles que tomam o caminho oposto, nos mantém reféns da dor, dificultam a nossa percepção e nos impedem de ver as coisas como realmente são.

O simples testemunho de perceber se os padrões de pensamento são dolorosos ou não, já resulta em um grande exercício, sendo essencial para ajudar a estabelecer o equilíbrio da mente.

Quanto mais nos aprofundamos nesses padrões, mais compreendemos quais são os gatilhos, de onde eles vêm, como se avolumam e se fortalecem.

Quando falamos em atenção plena, esse seria um dos exemplos, apenas testemunhar. Dessa maneira podemos avaliar: isso é útil, isso não é útil, isso me causará dor, isso me parece razoável.

O principal objetivo do yoga é nos livrar da predominância e/ou influência dos kleshas na mente. Porém, eles certamente continuarão existindo, porque são inerentes à mente humana.

Como o próprio sábio cita no capítulo sobre os estágios dos kleshas, eles não desaparecem, apenas se tornam ou podem estar dormentes. Ele não fala sobre eliminar nenhum desses aspectos.

Todos temos essas aflições dentro de nós mesmos. Mas é de nossa responsabilidade, permitir a intensidade com que cada uma delas existe e se manifesta em forma de pensamentos. A mente solta pode vagar por todos os lados.

Um paralelo entre yoga e ayurveda

Como foi possível perceber nos meus artigos anteriores, me encanta traçar um paralelo entre essas duas ciências, pois para mim não existe Ayurveda sem Yoga e nem Yoga sem Ayurveda.

Veja também: O que o Yoga e o Ayurveda têm em comum? | 🌿 Vida Veda

Temos descritos na literatura Ayurveda, os doshas da mente: rajas e tamas. Eles indicam respectivamente, uma mente acelerada demais, com nuances mais agressivas e ativas ou uma mente mais letárgica e depressiva.

Da mesma maneira que os doshas do corpo (vata, pitta e kapha), entram em desequilíbrio em função de uma má digestão (seja de alimentos ou sentimentos, daquilo que ingerimos e/ou assistimos/escutamos), os doshas da mente também são influenciados e oscilam de acordo com nossos hábitos e escolhas.

Veja também: O que são os DOSHAS NO AYURVEDA? | E por que você PRECISA saber disso (youtube.com)

“O alimento sustenta a vida de todos os seres vivos. A pele, a clareza dos sentidos, a boa voz, a longevidade, a felicidade, a satisfação, a nutrição, a força e o intelecto, são todos condicionados pelo alimento”.

Ca.Su.27:349

Uma pessoa com o organismo mais acidificado tende a ficar irritadiça. Outra pessoa que exagera alimentando-se sempre de refeições pesadas e muito gordurosas, pode ficar mais preguiçosa.

Assim acontece, quando vemos um filme dramático ou escutamos por muito tempo músicas tristes, nós tendemos a absorver e incorporar esses sentimentos que nos são passados através dessas atividades.

Podemos então dizer que aquilo que comemos, assistimos e ouvimos, pode estar intimamente ligado com o aparecimento dos kleshas, não acha?

Nos clássicos do yoga também encontramos muitas referências sobre a alimentação e os estados mentais. No livro Haṭha Yoga Pradīpikā, logo no primeiro capítulo, é descrito como um dos 10 yamas, o conjunto de condutas para avançar no alcance de uma vida mais plena – mitāhāra, que seria uma alimentação moderada.

Na Bhagavadgītā no capítulo 17, também existe referências sobre alimentação e a mente, veja abaixo:

“kaṭvamlalavaṇātyuśṇatīkṣṇarūkṣavidāhinaḥ |

āhārā rājasasyeṣṭā duḥkhaśokāmayapradāḥ ||

yātayāmaṁ gatarasaṁ pūti paryuśitam ca yat |

ucchiṣṭamapi cāmedhyaṁ bhojanaṁ tāmasapriyam ||”

“Alimentos muito amargos, muito azedos, muito salgados, muito quentes, muito apimentados, muito secos, que queimam, que causam dor, sofrimento e doença, são apreciados por pessoas rājasas.

Comida não cozida apropriadamente, sem elemento nutritivo, de cheiro muito forte, velha, que é resto de outra pessoa e impura, é apreciada por pessoas tāmasas.

Bhagavadgītā 17.9-10

Tradução Glória Arieira

Fica claro em vários dos compilados que temos sobre essas duas sabedorias irmãs, que uma alimentação pura, baseada majoritariamente em produtos frescos e sazonais, é a chave para um corpo são e consequentemente uma mente sã e mais equilibrada.

De igual maneira, devemos dar a devida atenção àquilo que vemos, escutamos e às relações que temos.

No Ayurveda temos também um conceito que se assemelha bastante a avidyā, que é chamado prajñaparadha. Seria um erro de percepção da realidade, um conhecimento obstruído que não está fluindo corretamente, e sim indo em uma direção oposta. De acordo com essa medicina, é a principal causa de unmada, a insanidade ou loucura.

Além disso, temos o conjunto descrito como sadvr̥tta, que são um dos grupos de segredos para uma vida longa e saudável, que deveriam ser seguidos diariamente no que chamamos de dinacaryā (as rotinas de cuidados diários) e se assemelham muito com o que verdadeiramente é viver o Yoga.

Os itens que compõem esse grupo, nada mais são do que uma forma de viver em harmonia com os ritmos da natureza ou poderia dizer que são hábitos virtuosos, que vão desde ações e pensamentos, até comportamento social e escolhas de estilo de vida.

O que não quer dizer que sejam diretrizes rígidas e sim orientações sobre como podemos viver melhor. Podendo ser encaixadas de acordo com a realidade de cada um de nós e na medida do possível.

Finalizando essa conexão, é justamente por sempre se entrelaçarem em diversos pontos, que eu acredito profundamente que não há como separar o Yoga do Ayurveda e vice-versa.

Pois ambos têm muitas semelhanças e visam beneficiar todos os seres humanos, física, mentalmente e espiritualmente.

Entendendo o funcionamento da mente

Perceber e analisar nossos próprios hábitos nos auxilia a entender os estados predominantes na nossa mente.

Reconhecer os nossos sofrimentos também nos ensina a entender mais empaticamente o sofrimento dos outros, a enxergar que as tendências comportamentais dos outros existem assim como as nossas e que são difíceis de combater, mas não são impossíveis.

Exercitando esse nível de percepção, conseguimos de certa forma prever o desenrolar das situações, sendo possível evitar determinados atritos ou resultados negativos.

Para alguns de nós essa prática é mais fácil, para outros um pouco mais difícil, afinal, envolve um certo nível de autocontrole. Mas o que realmente importa é que podemos trabalhar para isso e somos capazes de nos manter atentos para essas tendências.

Para já começar se quiser, você pode parar para pensar na última refeição que teve e como ela te fez sentir, pouco depois ou no dia seguinte.

Pode analisar também a última discussão que você teve, por exemplo. Quais sentimentos mais afloraram e como você reagiu? E a partir daí, iniciar um caminho frequente de autoestudo que sempre é promissor quando temos perseverança.

Diz pra mim, na tua vida, você consegue perceber os kleshas?

Conta pra gente se já reparou nessas tendências e como faz para lidar com elas!

Um grande abraço e nos vemos pela jornada!

Tainá Figueiras

Professora de yoga e monitora de Yoga Vijñana e  Padharta Vijñana no Vidyalaya

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